Por Vivian Oswald, de Moscou

 

Quem procurar no mapa-múndi entenderá por que a longínqua Pevek, na província de Chukotka, jamais estaria na lista das 11 sedes da Copa do Mundo. A 5.560 quilômetros de Moscou, é a cidade mais ao norte da Rússia — e da Ásia. Em pleno Ártico, está a apenas 100 quilômetros do Alasca. No auge do verão, os termômetros marcam comemorados 7 graus célsius. As mínimas do ano ficam em torno de 28 graus negativos, mas já bateram os 58 negativos. Os arredores dessa colônia, desenvolvida no pós-Segunda Guerra Mundial para a exploração de minerais, sediaram gulags, os campos de trabalhos forçados para onde eram mandados criminosos e prisioneiros políticos da então União Soviética, nesse caso como mão de obra usada na mineração de urânio. Mesmo fora do campeonato de futebol, Pevek estará sob holofotes da mídia internacional muito em breve. É para lá que viaja a imagem da Rússia moderna que o presidente Vladimir Putin tanto quer ostentar para o resto do planeta. Vai a bordo da primeira usina nuclear flutuante de que se tem notícia no mundo. Pelo menos até outro país aparecer com a sua — e os chineses têm planos de investir pesado no setor.

 

A Akademik Lomonosov partiu do Porto de São Petersburgo em abril deste ano para chegar a Pevek em setembro de 2019. Cruzou os mares Báltico, do Norte, da Noruega e o de Barents. Parou no caminho, no mês passado, em Murmansk — a maior cidade ao norte do Círculo Polar Ártico e importante porto militar e comercial — para se abastecer de combustível nuclear e para o reator do bloco gerador de energia ser posto em funcionamento. A viagem é longa. E a embarcação segue a 5 nós, ou o equivalente a 9 quilômetros por hora. Seu nome não poderia ser mais apropriado. Mikhail Vasilyevich Lomonosov (1711-1765), que hoje também empresta seu prestígio à renomada Universidade Lomonosov de Moscou, talvez a mais disputada da Rússia, foi o primeiro cientista russo a se tornar conhecido internacionalmente. Ele descreveu em 1760 a Lei da Conservação das Massas, 14 anos antes do químico francês Antoine Lavoisier. Por falta de repercussão no Ocidente à época, a descoberta acabou ficando para a posteridade como a Lei de Lavoisier, aquela que se aprende na escola: “Na natureza, nada se cria e nada se perde, tudo se transforma”. Lomonosov, entre outras façanhas, ainda escreveu a primeira gramática russa.

 

Com dois reatores capazes de produzir 35 megawatts de energia cada um, o suficiente para abastecer uma cidade de 100 mil habitantes, a Akademik Lomonosov almeja ser um grande salto tecnológico. Se tudo der certo, em 2024 substituirá as duas usinas obsoletas que geram energia em Pevek: uma nuclear e a outra à base de carvão. Assim, passaria a ser responsável pela geração de eletricidade e do mais que necessário aquecimento para a população de Pevek, que não chega a 5 mil pessoas. Também deverá abastecer outras áreas de Chukotka, tornando-se possivelmente sua principal fonte independente de geração de energia. Dona desse projeto que está em fase final de teste, antes de passar para a etapa da comercialização — embora já tenha uma proposta comercial —, a estatal russa Rosatom comemorou os primeiros resultados. De acordo com Vitaly Trutnev, diretor de Construção e Operação das Usinas de Energia Termonucleares Flutuantes da Rosenergoatom, braço da Rosatom para o projeto, a maior vantagem da nova usina de tecnologia criada integralmente na Rússia é o fato de ela produzir energia sem “nenhum dano ao ambiente”.

 

“Há muito tempo a Rússia desenvolve projetos de energia nuclear de pequeno porte. É um país muito vasto, inclusive com a região do Ártico, que precisa ser explorada com uma infraestrutura muito grande e complexa pela falta de estradas e pelo uso de energia tradicional cara”, afirmou Trutnev em seu escritório, em um dos prédios da filial da Rosatom em Moscou, pouco antes de se levantar para mostrar, no imenso mapa que decora a sala, onde fica Pevek e o trajeto da usina nuclear flutuante.

 

Na corrida pelo Ártico, os russos vêm tentando há décadas sair na frente da concorrência para desenvolver ativamente a região, onde se acredita haver não apenas minerais variados, como também petróleo em profusão. Há muitos países de olho nessa área de potencial energético. Muitos têm interesse em programas de cooperação, e a Rússia se diz aberta para eles. Gigante do setor, a Rosatom é hoje a maior geradora de energia nuclear da Rússia e do mundo, com uma capacidade de 202,9 bilhões de quilowatts-hora, ou 18,9% da energia produzida no país, de acordo com os últimos dados publicados, de 2017. Trata-se de pouco mais de duas usinas de Itaipu. A companhia estatal tem ainda uma carteira de usinas nucleares de 35 blocos geradores de energia em 11 países. As encomendas externas para os próximos dez anos somam US$ 133,5 bilhões, segundo dados oficiais da empresa, uma das dez maiores recolhedoras de impostos da Rússia.

 

A Rosatom está por trás da única frota de quebra-gelos movidos a reatores nucleares, os mais eficientes do mundo. Ainda que já tenham experiência de longa data, a Rússia e a própria empresa afirmaram estar preocupadas em conter os danos ambientais provocados pela exploração em região tão difícil, que tradicionalmente usa fontes poluentes como o carvão e o diesel. Trutnev não escondeu que todo projeto dessa envergadura, que utiliza tecnologias complexas, oferece riscos. Afirmou, porém, que eles são todos manejáveis e que já existe um protocolo para responder a emergências. Claro que a essa distância, e em condições climáticas que parecem impossíveis para quem jamais passou pelo Ártico, tudo se torna mais complicado. O diretor da estatal disse que haverá peças sobressalentes a bordo e em terra para os serviços de manutenção e eventuais consertos que se façam necessários. E o que não houver disponível de imediato poderá chegar, com outros especialistas de plantão, a partir do aeródromo de Pevek, para onde há voos regulares.

 

A operação das usinas flutuantes será muito parecida com a das plataformas de petróleo. No caso específico da Akademik Lomonosov, ela vai funcionar com 130 pessoas embarcadas. Esses funcionários trabalharão em turnos, como manda a legislação trabalhista — que já prevê uma espécie de adicional de insalubridade para quem trabalha naquela latitude —, e terão salários mais altos que os profissionais em terra firme. A bordo da embarcação, vão ocupar quartos individuais. Poderão usar a academia de ginástica, o ginásio, uma piscina pequena e sauna.

 

A produção de usinas de pequeno porte não para por aí. A gigante russa vem desenvolvendo pilhas com a capacidade de 6 a 10 megawatts térmicos, que poderiam ser instaladas em áreas tão difíceis como desertos, montes e até no Ártico, e seriam acessíveis a pequenas empresas. Não se descarta a possibilidade de, num futuro próximo, talvez, virem a trabalhar sem a presença de pessoal, o que reduziria de maneira expressiva o custo de operação. Seriam como “usinas nucleares remotas robôs”, algo que até algum tempo atrás provavelmente só se imaginaria nos roteiros dos filmes mais ousados de ficção científica. Artigo publicado originalmente na revista Época, em 22 de julho de 2018, e na Época (versão online), em 26 de julho de 2018.

 

Fonte: https://epoca.globo.com/em-experiencia-arriscada-russia-transporta-usina-nuclear-ambulante-para-artico-22911885

Em experiência arriscada, Rússia transporta usina nuclear ambulante para o Ártico
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